Padre Donizetti, o homem do povo sofrido

Corria o ano de 1926. Segundo relatos, sobre um púlpito preparado na porta da Igreja de São Benedito, em Vargem Grande do Sul (SP), por ocasião de uma quermesse, padre Donizetti Tavares de Lima (1882-1961) dirigiu-se aos presentes: “Sei que entre vocês há gente querendo me matar (e, desabotoando os primeiros botões da batina); podem atirar! Estou aqui…” Com efeito, os anos em que passou como pároco daquela cidade lhe trouxeram inúmeros desafetos, particularmente entre os poderosos que, literalmente, foram ‘se queixar ao bispo’ dom José Alberto Gonçalves (1859-1945), em Ribeirão Preto (SP). Seus acusadores pediram a remoção do padre que, segundo uma lista de acusações lavrada em cartório, entre outras coisas, “bebe até altas horas nos bares da cidade” e “nos sermões não trata de religião, mas acusa os possuidores de haveres de serem potentados e perseguidores da classe operária”. Com as duras palavras ditas naquele púlpito improvisado, ele se despediu de Vargem Grande, sendo transferido para a cidade de Tambaú (SP), na mesma diocese. Foi uma troca: o padre Manoel Antônio Pinto Vilella passou para Vargem Grande e ele foi para Tambaú. Quem poderia prever os impressionantes acontecimentos que envolveriam sua vida na pequena cidade do interior de São Paulo?

[A1] Mas de onde veio a fama de santidade dessa testemunha do Reino? Por que dificilmente encontraremos alguém, com cinquenta anos ou mais, que nunca tenha ouvido falar do sacerdote? Por que, após tudo o que ocorreu em sua vida, os cartórios não pararam de registrar crianças com o nome de Donizetti, em sua homenagem? Se há algum seu conhecido com esse nome, leitor – seja homem, seja mulher –, esteja certo: na raiz, ainda que esquecida, está uma honra ao padre de Tambaú. Seu nome foi escolhido pelo pai, Tristão Tavares de Lima, para homenagear o músico italiano Gaetano Donizetti (1797-1848). Por ser músico, Tristão colocou nos filhos o nome de famosos musicistas. E, no alvorecer de 3 de janeiro de1882, na cidade mineira de Santa Rita de Cássia (hoje Cássia), o bebê Donizetti foi colocado no colo de dona Francisca Cândida de Lima. Aos quatro anos, o pequeno e sua família estabeleceram-se na cidade de Franca (SP). Da mãe, ele herdou a fé profunda. Do pai, herdou o gosto pelas letras e o amor pela música. Aos quinze anos, seu talento musical chegou até dom João Batista Corrêa Nery (1863-1920), que, recém-nomeado bispo de Vitória (ES), queria levar o rapaz com ele, para ajudá-lo com a música sacra. Dona Francisca opôs-se energicamente a isso, pois o filho era ainda muito criança e, além disso, a precariedade das estradas tornava Vitória ainda mais distante. Só não foi distante a influência desse bispo na vida do jovem Donizetti…

Aos dezoito anos, preparou-se para cursar a Faculdade de Direito da Universidade de São Francisco. Como todo jovem que enfrenta decisões importantes, ele se viu em dúvida de qual carreira seguir, oscilando entre o direito e o seminário, enquanto trabalhava como organista nas igrejas da cidade de São Paulo. Certa ocasião, abrigando-se de um temporal na igreja localizada ao lado da faculdade, rezou pedindo que Deus lhe concedesse discernimento, pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida. De repente, ouviu uma voz que o chamava pelo nome e uma mão que o tocava. Ao levantar a cabeça, viu dom Nery em pé, a seu lado: “Sua vocação é o sacerdócio, para ajudar a humanidade que sofre”. Nesse momento, Donizetti decidiu seguir para o seminário de Pouso Alegre (MG). Ele seria padre!

Em 12 de julho de 1908, ele foi ordenado pelas mãos de dom Nery. Após ser nomeado bispo de Campinas (SP), o prelado levou o novo sacerdote para Jaguariúna (SP) o filho de seu Tristão e de dona Francisca. Um ano depois, padre Donizetti foi nomeado pároco em Vargem Grande do Sul, onde permaneceu por dezessete anos. Em 1926, ele foi transferido para Tambaú. Ao chegar a essa cidade, manteve as mesmas características de sacerdote vigoroso e terno. Padre Donizetti não tinha nada de tão extraordinário, sendo “um pároco de aldeia” (expressão retirada da obra Diário de um pároco de aldeia, do escritor francês Georges Bernanos [1888-1947]). na obra Porém, o sacerdote estava fadado a algo mais, jamais ao anonimato, ao sacrifício e ao abandono de tantos párocos de aldeia. Entre outros exemplos, sua consciência social cristã, forjada nos estudos do seminário, marcada pela nascente Doutrina Social da Igreja, movia-o a não tolerar que os bancos mais bem posicionados da Igreja de Santo Antônio ficassem reservados (inclusive com o nome das famílias) aos que tinham mais posses e mais faziam donativos. Para o novo pároco, quem chegasse primeiro ocuparia o banco que quisesse, fosse rico, fosse pobre. Não se conformava com o time de futebol reservado aos filhos dos fazendeiros e comerciantes, muito menos com o coral para as meninas das famílias mais ricas; organizou então o chamado “time do padre” e o “coral do padre”, que atendia, com opções tão salutares para a juventude, aqueles que eram discriminados na prática do esporte ou da arte musical por conta de sua condição social. Com atitudes assim, granjeava admiradores e adversários.

Seu cuidado com o povo era permanente. Em tempos que a saúde pública era precaríssima, padre Donizetti, letrado como era, entrou em contato com o Instituto Butantã, em São Paulo, para que lhe mandassem soro antiofídico; em troca, ele lhes enviaria as cobras. E o soro chegava a Tambaú e salvava a vida de várias pessoas que eram picadas pelas cobras (o próprio sacerdote aplicava em quem precisava). Entre injeções, defesa dos mais humildes, atenção às crianças, moral ilibada, liderança comunitária, estudos e leitura cotidianos, música e canto, engajamento político, crescia a percepção de que ali estava bem mais que um simples pároco de aldeia. Mas a marca do padre que colocaria Tambaú, efetivamente, no mapa-múndi, estava por vir.

Na pequena Tambaú (cuja população à época era de quinze mil habitantes na época), alguns moradores já haviam tido a experiência de receber uma cura pela imposição das mãos e pela bênção do padre. Entre os relatos, estava a cura da gagueira do jornalista Joelmir Betting (1936-2012), então coroinha; também havia relatos de levitação e ubiquidade (bilocação) do sacerdote. Mas tudo ficava restrito ao povo do local. Porém, em 1954, o senhor Marcassa, um comerciante de vinhos de outra cidade, foi curado de uma dor no joelho. Posteriormente, ele espalhou a notícia do padre milagroso, e os romeiros começaram a afluir. Entre 1954 e 1955, a multidão de romeiros de vários lugares do País era cotidiana, em busca de salvar-se de diversas enfermidades, do corpo e do espírito; todos aguardavam, ansiosos, a bênção pública dada pelo padre. Com isso, Tambaú transformou-se: casas viraram pousadas, terrenos tornaram-se banheiros, mas tudo funcionando com precárias condições de higiene. Jornalistas, estudiosos, curiosos, marreteiros religiosos entupiram as ruas no caminho por onde passavam aqueles que chegavam, à cidade dos milagres de carro, em caminhões pau de arara, de trem, a cavalo, a pé, de bicicleta e até em pequenos aviões para livrar-se de seus males. Muitos alcançavam o que buscavam; multidões, porém, retornavam a seus lugares de origem sem a cura de seus males, mas amparadas pelo vigor daquele homem de voz poderosa.

Como era de se esperar, não tardou para que os problemas começassem, envolvendo questões eclesiais, econômicas e políticas. Prudentemente, padre Donizetti anunciou que sua última bênção e os atendimentos públicos aconteceriam no dia 30 de maio de 1955. E assim foi. Isso ocorreu com uma chuva de pétalas de rosas, organizada pelo radialista Pedro Geraldo Costa (1920-1990), da Rádio Nacional, que transmitia as orações e as bênçãos do padre a milhares de espectadores. Diante da Capela São José, em palanque na praça, um emocionado sacerdote mineiro deu a derradeira bênção pública às 20 horas. No outro dia, após um longo ano, Tambaú, milagrosamente, amanheceu vazia, sem nenhum romeiro. Assim como o papa emérito Bento XVI (1927-), padre Donizetti recolheu-se em uma vida mais reclusa, lutando como podia para construir um santuário para Nossa Senhora Aparecida, a quem ele atribuía a graça dos milagres que aconteceram. Em 16 de junho de 1961, faleceu o taumaturgo de Tambaú, sem ver o sonho do santuário concretizado.

Em 1980, o padre Antônio Haddad escreveu o livro Padre Donizetti, o homem do povo sofrido (do qual emprestamos o título para este artigo). Nessa obra, ele revisitou o fenômeno do padre com fama de santo, a partir do olhar do então recém-publicado Documento de Puebla (1979) e da primeira visita do papa São João Paulo II (1920-2005) ao Brasil, que incentivava a boa religiosidade popular, da qual padre Donizetti era um expoente. Tudo aquilo que o eterno padre de Tambaú viveu foi em torno do povo sofredor – fosse organizando os círculos operários, fosse formando o time e o coral do padre, fosse construindo o asilo para os idosos, fosse atendendo à Ecclesia Lascatorum, “a Igreja dos Lascados”, como o teólogo Leonardo Boff (1936-) se refere aos cristãos empobrecidos. Hoje, o papa Francisco (1936-) pede insistentemente que vivamos a cultura do encontro, indo às periferias da existência. Foi isso que viveu o filho de dona Francisca e de seu Tristão: padre Donizetti sempre foi ao encontro das pessoas como um simples pároco de aldeia; se não foi ainda mais às periferias da existência, isso ocorreu por que elas vieram como um tsunami sobre ele, na forma das mais terríveis dores, doenças e sofrimentos dos romeiros. O túmulo que por primeiro recebeu seu corpo se tornou pequeno. Atualmente, os restos mortais de padre Donizetti repousam em uma cripta dentro do grande santuário dedicado a Nossa Senhora Aparecida, na cidade de Tambaú. Eles foram transladados após a exumação, que concluía a etapa diocesana do seu processo de beatificação. Atualmente, seus devotos aguardam, ansiosos, o anúncio de sua beatificação, pela graça de Deus.

Depoimento do autor

Eu era menino quando fui levado em uma romaria à Tambaú do padre Donizetti, cerca de dezesseis anos após sua morte. Lembro-me da casa do sacerdote, de uma igreja e de uma praça com barraquinhas de bugigangas e artigos religiosos. No entanto, minha maior lembrança é do túmulo em que seu corpo estava sepultado (para meus olhos de criança era um túmulo gigantesco, em nobre granito preto, com uma infinidade de velas na parte de trás e uma multidão de pessoas ao redor). Há sete anos, eu tive a oportunidade de rever Tambaú e visitar o mesmo túmulo. Ele não era feito de granito; ao contrário, era muito simples e estava pintado de azul. Também não era gigantesco, sendo muito menor do que imaginava. Além disso, o veleiro não tinha nada de infinito. Quando estive lá, em um dia de semana, o cemitério estava vazio, contrastando com a multidão que (essa sim!) existia quando o visitei pela primeira vez. Nessa nova visita, aproveitei para beber na fonte, revisitando a casa do padre, o santuário dedicado a Nossa Senhora Aparecida (que ele tanto sonhou) e adquirir um devocional e uma biografia1 que pudesse me ajudar a entender quem era aquele homem que aparecia nas fotos como um padre de rosto forte e vigoroso e uma aura de mistério que tanto me marcou. Só depois descobri, em conversas familiares, que eu havia sido um romeiro menino, acompanhando a romaria organizada pela mãe de um cunhado, para agradecer pela recuperação de uma grave enfermidade deste, que aquela boa mãe atribuía à intercessão do padre com fama de santo. Pesquisando em sites de vídeos, é possível ouvir a bênção de padre Donizetti, transmitida pelo rádio nos anos 1950. Quanto mostro esse conteúdo para algumas pessoas, elas ficam com os olhos marejados e dizem: “Lembro-me da minha mãe nos chamando ao redor do rádio, com um copo de água em cima dele, para que fôssemos abençoados e bebêssemos um pouco da água…” Às vezes, ponho no monitor do computador o rosto forte, vigoroso, de olhar profundo, com a mão enorme erguida para abençoar, e solto o áudio da bênção com a voz forte do taumaturgo de Tambaú, falando em latim: “Dominus exaudi orationem meam…” (‘Senhor, ouvi minha oração…’). Nesse momento, gosto de pensar que a bênção vem (desde onde ele se encontra agora) sobre mim e também sobre o povo sofrido que ele tanto amou e cuidou. Se, após ler este artigo, você passar a conhecer melhor padre Donizetti ou aprender a amá-lo um pouco mais, sinta que a bênção dele vem sobre você! Juntos, aguardemos o dia em que ele possa ser venerado nos altares do País. Mais que venerá-lo! Que, por seu exemplo, saibamos amar profundamente a Deus e aos Seus preferidos: o povo sofrido! Padre Donizetti de Tambaú, rogai por nós!

José Ricardo Baptista

5/12/2019

Fonte: https://www.omensageiro.org.br/padre-donizetti-o-homem-do-povo-sofrido/